As organizações feministas e de direitos humanos signatárias desta carta, que estão em rede por toda a América Latina, expressam solidariedade e apoio à atriz argentina Thelma Fardín, que denuncinou abuso sexual contra o também ator Juan Darhtes. Fardin foi abusada em 2009, na Nicarágua, durante turnê de um programa infantil de sucesso do qual ambos participavam. Ela tinha 16 anos e Darthés, 45.
Em 2018, após denúncia criminal, o ator fugiu para o Brasil - país onde nasceu e que não extradita seus nacionais. Depois de três anos de busca por justiça, - com ordem de prisão e detenção internacional - o julgamento contra o ator terá início na Justiça Federal do Estado de São Paulo; as sessões estão marcadas para 30 e 1º de dezembro.
Ressaltamos a importância de que casos estarrecedores como o de Fardin não fiquem impunes e que, com isso, seja enviada uma mensagem às meninas e mulheres de toda a América Latina de que elas podem confiar no sistema de administração de Justiça.
A luta do movimento de mulheres da região abriu portas e pavimentou o caminho para que não fiquemos caladas. Nos últimos anos, a reivindicação dos direitos humanos das mulheres, que seguem de mãos dadas com #NiUnaMenos, #MeToo, #ChegadeFiuFiu, #PrimeiroAssédio, #SheDecides, #MiráComoNosPonemos, entre outros, tem sido transcendental na luta para erradicar a violência de gênero contra meninas e mulheres.
O caso de Fardin representou um divisor de águas na Argentina: na noite em que ela fez sua denúncia contra Darthes, em 2018, as ligações no Canal 144 - a linha direta argentina para vítimas de violência de gênero - aumentaram em 1.200%.
Infelizmente, a importância pública do combate à violência de gênero se contrapõe aos baixos índices de acesso à Justiça na América Latina. Na Argentina, apenas 15,5% das denúncias por crimes contra a integridade sexual chegam a ser condenadas.[1] Esse padrão se repete em outros países da região. No Chile e no Equador, menos de 4% das queixas chegam à instância de condena[2] e na Guatemala e no Brasil, a taxa de condenação por estupro é de apenas 1%.[3]
Isso se agrava se levarmos em consideração que, em todo o mundo, 1 em cada 5 meninas e um em cada 13 meninos sofrem violência sexual na infância, segundo dados da Organização Mundial de Saúde.[4]
A impunidade para crimes de violência sexual passa a mensagem equivocada de que a violência contra as mulheres e meninas é tolerada. Isso favorece o sentimento de insegurança e uma persistente desconfiança na justiça por parte das vítimas.
Fardin chegou a esta instância judicial no Brasil a partir do apoio da sociedade e porque três promotores públicos, de três países diferentes - Argentina, Nicarágua e Brasil -, consideraram que existem evidências suficientes para levar o seu autor a julgamento.
Muitas denunciaram e expuseram suas dores com coragem antes de Fardin e, também por isso, hoje ela pode contar a sua história e, assim, incentivar milhares de outras mulheres a quebrar uma cadeia de silêncio que, ainda assim, se perpetua.
A justiça deve ecoar o momento social que vivemos. O Poder Judiciário tem responsabilidade com todas as meninas e mulheres; de mostrar que elas podem confiar no sistema e denunciar a violência sofrida. Esta Justiça deve ser restauradora, respeitar o tempo das vítimas e corresponder à coragem de quem faz a denúncia.
Breve linha do tempo dos acontecimentos
Em 2018 Thelma fez a denúncia criminal na Nicarágua, já que o abuso sexual aconteceu durante uma turnê de televisão naquele país.
No dia 17 de outubro de 2019, o Décimo Tribunal Criminal da Circunscrição de Audiência de Manágua, após ter avaliado a acusação e as provas apresentadas, ordenou a emissão de um mandado de prisão internacional contra o acusado. Com base neste pedido, em 14 de novembro de 2019, a Interpol emitiu um alerta vermelho vigente até hoje, a fim de localizar e deter Darthés com vistas à sua extradição.
Para evitar ser preso e submetido a processo penal, Darthés viajou ao Brasil, por ter nacionalidade brasileira e, por mandato constitucional, o país não extradita seus nacionais.
Em outubro de 2020 o caso foi enviado da Nicarágua ao Brasil. Em abril deste ano, o promotor Andrey Borges de Mendonça decidiu dar continuidade ao caso e protocolou a denúncia formal. Desta forma, o Ministério Público argentino - que colaborou por meio da UFEM com a investigação realizada em Manágua -, a Interpol e os diversos peritos que intervieram no caso, aderiram à investigação da justiça nicaraguense.
Todos esses atores, de três jurisdições diferentes, validaram a denúncia de Thelma e concordaram que o acusado deveria ser submetido a um processo penal no qual será julgado por esses fatos.
Organizações signatárias desta carta:
Anistia internacional
Católicas pelo Direito de Decidir
CEPIA
CLADEM
[1] UFEM, Relevamento de fontes secundárias de dados sobre violência sexual a nível nacional e na Cidade Autônoma de Buenos Aires, 2019.
[2] Contreras, J. M.; Bott, S.; Guedes, A. Dartnall, E. (2010) Violência sexual na América Latina e o Caribe: análises de dados secundários. Iniciativa de Investigação sobre Violência Sexual. Disponível em https://oig.cepal.org/es/documentos/violencia-sexual-latinoamerica-caribe-analisis-datos-secundarios (consultado por última vez em 19 de novembro de 2021)
[3] Buchmuller, H. (2016) Crimes sexuais: a impunidade gerada por um estado omisso. Disponível em https://congressoemfoco.uol.com.br/projeto-bula/reportagem/crimes-sexuais-a-impunidade-gerada-por-um-estado-omisso/ (consultado por última vez no dia 23 de novembro de 2021)
[4] OMS, Maltrato infantil, 8 de junho de 2020. Disponível em https://www.who.int/es/news-room/fact-sheets/detail/child-maltreatment (consultado por última vez no dia 22 de novembro de 2021).